Celebremos sim a contratação de grávidas — mas não nos contentemos com ela

Paula Fonseca Stanton
11 min readApr 14, 2021

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Ao menos uma vez a cada 2 ou 3 semanas, vejo empresas divulgando com orgulho a contratação de mulheres grávidas — esses dias, por exemplo, o Estadão dedicou uma matéria inteira para contar algumas dessas histórias. Enquanto leio os emocionados posts e notícias, sempre celebro com cada uma dessas mulheres a vitória que é fazer uma transição de carreira no meio do período em que podemos ser vistas pelos retrógrados como um mau investimento para os negócios.

Minha celebração tem motivação tripla:

  1. Eu fui a mulher grávida que perdeu uma oportunidade profissional incrível porque, nas palavras do RH da empresa, "achamos que você não vai dar conta da posição no seu estado";
  2. Eu sou a mulher grávida que, quase 10 anos depois, trocou de emprego aos 4 meses de gestação, e;
  3. Eu tenho participado direta ou indiretamente, durante toda a minha carreira, de discussões e implementações de práticas de inclusão de profissionais de grupos sub-representados.

A minha celebração traz consigo, no entanto, um pé atrás, especialmente nas não raras vezes em que vejo a narrativa ir só até a contratação de mulheres grávidas e não discutir o que acontece com essas mulheres entre o seu primeiro dia de trabalho e o dia do parto, entre o retorno após a licença maternidade e o resto das suas carreiras. Ver uma empresa definir o sucesso da suas políticas de diversidade e inclusão com base na sua capacidade de contratar pessoas minorizadas é, para mim, um indicativo de que essa empresa ainda está engatinhando no entendimento de o que é diversidade e qual parte a inclusão compõe nessa conversa.

Não me entenda mal, contratar mulheres grávidas é ótimo

Na ocasião da minha primeira gestação, em 2012, a única coisa que eu queria era ser contratada. Eu estava a poucos meses de terminar a faculdade e tinha o sonho de ser trainee de consultoria, mesmo cursando Psicologia. Não só isso, eu sonhava com uma consultoria específica, uma multinacional cujo nome seria reconhecido em qualquer lugar do mundo e que tinha contratado algumas das pessoas mais inteligentes que eu conhecia.

Dediquei tempo a ler todos os livros que dei conta de encontrar sobre negócios para cobrir a lacuna de conhecimento que eu tinha nessa área. Lembro-me, por exemplo, de só ter conseguido responder uma pergunta específica sobre timing para um IPO na dinâmica de grupo porque tinha lido sobre isso em Axiomas de Zurique. Fui aprovada em cada uma das etapas de avaliação, ao lado de pessoas que tinham cursado Administração, Economia, Engenharia e Contabilidade.

Na semana em que fiz a última entrevista com um dos sócios do escritório, descobri que estava grávida. Comuniquei à empresa, certa de que eles não veriam problema. No dia em que achei que finalmente receberia uma oferta, recebi uma ligação do RH da empresa. A mulher do outro lado disse:

A decisão sobre seguir será sua, Paula. Mas acreditamos que é nosso papel dizer que é provável que você não dê conta do programa. O ritmo é acelerado, o nível de cobrança é alto, existem viagens a trabalho e você teria um programa mais curto que os demais trainees. Seria menos tempo para entregar o mesmo resultado. Na sua condição, isso pode ser um problema. Mas a escolha é sua.

Quando desliguei o telefone, minha sensação era de ter levado uma porrada que não vi de onde veio e portanto eu poderia até tentar processar sua dor mas sem o direito de me sentir injustiçada por ela. Senti vergonha da ingenuidade de ter achado que teria chances de ser trainee estando grávida. Por uma ou duas horas, me ressenti de mim mesma e do meu bebê, que até então nem tinha nome ainda. Chorei quietinha no meu quarto, enquanto escrevia um e-mail para a consultoria informando que estava me retirando do processo seletivo. Eles estavam certos, eu não daria conta, pensei. Agradeci o cuidado que eles demonstraram ao falar tão abertamente sobre a minha situação e passei anos sem mencionar esse acontecimento para mim mesma e para ninguém mais. Eu permaneci desempregada até o nascimento do meu filho.

Essa não foi a única vez em que a visão que o mercado de trabalho tem sobre o que é estar grávida ou ser mãe barrou os meus sonhos profissionais. Quando o meu filho tinha 2 meses de vida, fui entrevistada por uma indústria multinacional que me reprovou para uma posição de analista júnior depois de estranhamente passar 10 minutos da entrevista tentando entender com quem meu bebê ficaria durante o mês de treinamento fora do país e se eu aguentaria mesmo ficar longe do meu filho.

Não sou a única azarada. Uma grande amiga executiva, ao sair do seu emprego C-level em uma empresa global, ouviu o CEO explicar para seu time que "como toda mulher com filhos pequenos, ela estava sentindo falta de passar mais tempo com as crianças" — só que esse não tinha sido o motivo da sua saída. Uma outra amiga me escreveu há pouco tempo. "Virei estatística", ela disse, "fui demitida ao voltar da licença maternidade". A lista é longa, não pretende se exaurir aqui e não se limita ao meu círculo social — de acordo com pesquisa publicada pelo Correio Braziliense em 2018, 3 em cada 7 mulheres brasileiras têm medo de engravidar e serem demitidas, enquanto, de acordo com pesquisa da Catho em 2019, 52% das mulheres foram constrangidas por colegas e empregadores por conta da maternidade durante a gravidez ou retorno da licença parental. Dessas mulheres, 20% foram demitidas apesar da estabilidade empregatícia estabelecida pela legislação trabalhista.

Eis que, nesse cenário, começamos a ver despontarem empresas brasileiras que se orgulham de terem contratado gestantes. São organizações que não torcem o nariz para o estado de ocupação do útero de alguém que seja qualificado para a tarefa que precisa ser feita ou para o problema que precisa ser resolvido. Ao contratarem grávidas, elas sinalizam publicamente a necessidade de pensar sobre a exclusão histórica desse grupo do ambiente de trabalho e, mesmo que não estejam prontas para promover efetiva inclusão após a contratação, se colocam em posição possível de aprender a fazê-lo a partir da vivência dessas gestantes, que tem o potencial de promover conversas relevantes na organização e, por consequência, alterar suas próprias práticas.

Então não me entenda mal: é ótimo ver empresas contratando grávidas e falando sobre isso no meio empresarial. Queria que esse movimento existisse em 2012 como existe hoje.

O sucesso da contratação de grávidas, no entanto, vai depender do que acontece depois das suas admissões

Qualquer empresa mais madura na jornada de promoção de diversidade e inclusão sabe: existe um abismo entre ser diversa (ter pessoas diferentes como, por exemplo, resultado de contratação de pessoas minorizadas) e ser inclusiva (promover senso de pertencimento e apreço entre pessoas diferentes). Quero dizer com isso que, se queremos promover a inclusão real de grávidas no trabalho — ou de qualquer grupo minorizado — , não podemos esperar que, após a contratação, o acaso se encarregue do resto. Até porque as práticas que construímos sem atenção a diversidade são, em geral, aquelas que sem querer promovem a exclusão dos mesmos públicos que tanto queremos incluir.

As práticas que a pessoa grávida recém-contratada encontra no dia a dia podem reforçar no seu inconsciente ou consciente que ela não é efetivamente bem vinda ali. Isso é um fenômeno social que Dr. Claude M. Steele, professor em Stanford e pesquisador que cunhou o termo, chama de cues about a setting's inclusiveness (em tradução livre minha, pistas sobre a inclusão de um lugar) e que guarda um paralelo curioso com a experiência de estar grávida no trabalho.

Vamos a um exemplo simples. Digamos que você é um homem transgênero que retificou seu gênero no registro civil, está grávido e acabou de aceitar a oferta de uma empresa que celebra a sua chegada e a diversidade que ela promove. Eles dizem: "sejam bem vindo, aqui você está livre para ser você mesmo, somos diversos, inclusivos e respeitamos a individualidade dos nossos colaboradores". Isso é o que a empresa diz. Na prática, no entanto, ao migrar para o plano de saúde da empresa, você descobre que não tem mais a cobertura para atendimento obstétrico nem ginecológico pois, para este plano, você é homem e homens não precisam de atendimento destinado ao público feminino. A empresa não quer comprar a briga com o plano, nem se oferece para custear o valor da assistência médica privada de que você precisa. É aqui que, segundo Steele, o seu cérebro capta, sem esforço e, muitas vezes, sem consciência, uma pista de que a inclusão de pessoas como você, homens trans que precisam de ginecologistas ou obstetras, não acontece de verdade.

Ou vamos pensar em um exemplo de pista ainda mais sutil. Você é uma pessoa grávida que acabou de começar um novo emprego. A empresa afirma o tempo inteiro que você terá flexibilidade de horários para acomodar as suas necessidades — e você tem mesmo. Mas, enquanto você está no médico ou com as pernas para cima no sofá de casa tentando se recuperar de um crise de pressão arterial baixa ou em pleno sábado de manhã montando o berço do bebê, as demandas seguem se acumulando na sua caixa de e-mails e nas suas metas de entrega para o ano. Você olha ao redor e todo mundo está trabalhando longas horas, respondendo mensagens a qualquer momento do dia, da noite ou do final de semana. Todo mundo menos você, que não consegue apenas compensar as horas que dedicou às necessidades da gestação porque precisa acomodar mais necessidades da gestação (e, logo mais, da maternidade também). "Será que esse lugar é para mim?", diz uma vozinha lá no fundo da cabeça. Mais uma pista de que este lugar talvez não seja tão inclusivo assim.

Outros exemplos de pistas sobre a inclusão de um lugar são inúmeros e mais sutis do que a gente imagina. São a inexistência de mulheres grávidas que tenham sido promovidas durante a gestação ou que tenham recebido um projeto desafiador durante esse período; é o líder que dá feedbacks em tom que confunde carinho com condescendência pois "ela está grávida, melhor dar feedbacks de desenvolvimento só depois que ela voltar"; é a empresa que espera que você chegue às 38, 39, 40 semanas de gestação no pico da forma física, sem se cansar ao falar, com os pés cabendo nos sapatos e energia para dedicar exclusivamente ao trabalho.

O problema com as pistas sobre inclusão é que, apesar de sutis, elas tem efeitos devastadores. Alguns dos mapeados em pesquisa de campo por Dr. Steele incluem comportamentos de vício em trabalho, estafa/burnout, problemas de desempenho e, por fim, desistência (na nossa linguagem empresarial, rotatividade). No contexto da discussão sobre contratação de pessoas grávidas, quando não pensamos em práticas e políticas inclusivas para o after hire, as chances são de que veremos esse talento murchar ou meramente sobreviver à experiência, sem realizar seu potencial. Talvez elas adoeçam no processo e peçam desligamento das mesmas empresas para cujas ofertas disseram um entusiasmado "sim!". E talvez a empresa olhe para essa experiência e pense "puxa vida! não dá certo mesmo contratar pessoas grávidas". Entendeu o tamanho desse buraco?

O que empresas que já pensam em inclusão de pessoas grávidas estão fazendo

Nenhuma empresa que eu conheça tem práticas perfeitas de inclusão, mas algumas estão em fases mais maduras da conversa e podem ensinar bastante às demais. Essas organizações:

  • Criam políticas e práticas inclusivas para as pessoas que já são parte do time e ficam grávidas/se tornam pais e mães. Em outras palavras, elas se preocupam em acomodar demandas já existentes e em promover inclusão efetiva de seus colaboradores. A diversidade na contratação vem como resultado de uma experiência excelente de quem já está dentro da empresa e raramente é alardeada como algo excepcional.
  • Vão além das taxas de contratação de pais, mães e grávidas, e monitoram também suas taxas de satisfação, promoção, turnover e afastamento. Entender as diferenças na experiência de grupos de pessoas subrepresentadas é uma excelente forma de diagnosticar onde estão os focos de "pistas sobre inclusão" que são invisíveis a quem não é atingido por elas — não seria diferente com grávidas.
  • Tem times dedicados a revisarem suas práticas de contratação e desenvolvimento de carreira, os times "caça-vieses". Por exemplo, a ausência de critérios de desempenho claros para cada tipo de posição abre espaço para que os vieses inconscientes das pessoas envolvidas sequestrem o processo de tomada de decisão. E é assim que, sem perceber nem querer, muitas empresas que se dizem inclusivas terminam por reconhecer menos e promover menos talentos sub-representados, inclusive gestantes. Os times caça-vieses identificam situações como essas e atuam para corrigi-las proativamente.
  • Revisam seu pacote de benefícios para assegurar que eles atendem as demandas de diferentes grupos, inclusive gestantes, pais e mães (sem esquecer da intersecção com casais e famílias homoafetivas e transgêneras). Esse tipo de exercício é particularmente valioso entre start-ups, que em geral tem pacotes de benefícios que atraem profissionais recém saídos das faculdades mas pecam nos benefícios para profissionais que têm família, como cobertura robusta do plano de saúde e odontológico, valores baixos ou nulos de co-participação, seguros e previdência, flexibilidade de horários, etc.
  • Reconhecem que a gestação e a maternidade são experiências disruptivas para quem as vive e que demandam flexibilidade. Muitas empresas já oferecem a licença maternidade estendida para 6 meses como consequência de sua adesão ao programa Empresa Cidadã, mas outras dão passos adiante e oferecem programas de redução progressiva da jornada de trabalho nas últimas semanas de gestação e retorno da licença maternidade em jornada parcial e progressiva (15, 20, 30 e 44h semanais).
  • Oferecem licença paternidade de duração igual à maternidade (4 ou 6 meses) durante o primeiro ano de vida da criança. Essa prática é amplamente reconhecida por reduzir a desigualdade no tratamento de mulheres grávidas e mães, ajudar a fechar a diferença salarial entre homens e mulheres e promover a participação paterna, junto com todos os seus benefícios, nos primeiros meses de criação de seus filhos.

Se você conhece mais práticas de atenção a gestantes no trabalho, não deixe de compartilhá-las comigo — eu adoraria aprender mais sobre o que tem sido feito mundo afora.

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Por fim, celebramos a contratação de pessoas grávidas: mas quem são as grávidas que contratamos?

Até aqui, exploramos como a contratação de grávidas sem intencionalidade nas práticas posteriores de inclusão deixa o sucesso dessas pessoas à mercê do acaso. Deixo, para terminar, uma outra provocação.

Mesmo se quisermos considerar o movimento que vemos hoje como uma vitória, precisamos enxergar com lucidez a limitação que existe nele: a contratação de grávidas como acontece hoje ainda alcança uma camada relativamente privilegiada da população. As grávidas que vemos mudando de emprego no meio da gestação são mulheres cis, majoritariamente brancas, tem no mínimo ensino superior completo e experiência formal de trabalho em áreas de atuação em alta demanda no mercado, como tecnologia, finanças e posições de liderança. A vitória que celebramos segue excluindo as pessoas que, como um grupo, se beneficiariam mais da oportunidade de ter emprego, salário e benefícios durante a gestação: aquelas com menos acesso a educação, as pretas, as trans, as pobres.

Sob o risco consciente de parecer ingênua na minha visão sobre o que diversidade e inclusão empresariais deveriam ser, digo que teremos amadurecido não quando contratarmos uma pessoa grávida para ser gerente de engenharia de uma start-up, mas quando contratar uma operadora de telemarketing grávida for algo corriqueiro, que nem chama mais nossa atenção no feed do LinkedIn.

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Paula Fonseca Stanton

Proud introvert. Book worm. I-study-for-fun kind of nerd. Human Resources executive and consultant. Mother of 2.